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montesclaros.com - Ano 25 - quinta-feira, 25 de abril de 2024
 

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Mensagem: Um saudoso piano... e sua história

Ruth Tupinambá Graça

Dulce Sarmento era a nossa professora de música e canto coral na Escola Normal Oficial de Montes Claros. Lecionava em todos os turnos, para todas as turmas, ainda ensaiava, em horas extras, com os alunos para os teatros que organizava em beneficio da Caixa Escolar.
A Escola Normal era de uma pobreza de fazer dó. Faltava-lhe tudo. Longe da civilização, nos anos 30, o que seria Montes Claros, abandonada, esquecida, principalmente nessa área de educação?
Mas o montes-clarence (que já era teimoso naquele tempo) querendo o melhor para sua terra, enfrentando todas as dificuldades, fazia nossa escola crescer, sendo já considerada escola modelo nesta região norte mineira, a qual prestava grande beneficio acolhendo todos os alunos daquela região.
Na nossa escola havia de tudo um pouco e o currículo enriquecido com as aulas de artes, artesanato e até culinária. Saíamos daquele educandário prontas para enfrentar a vida.
As aulas de estágio eram apertadas e fiscalizadas por inspetores da capital e quando alcançávamos o terceiro ano do Magistério, chamava-nos de alunas-mestras, título que muito nos empolgavam.
Mas, ai é que morava o perigo. A turma das classes anexas à Escola Normal (própria para estágio) nas quais fazíamos o treinamento para professora, era por excelência, composta por alunos espertos e inteligentes. Estudávamos muito, para não passarmos vexames com as perguntas maldosas e indiscretas dos espertalhões daquela classe.
Ainda me lembro do Mauricinho (hoje doutor Maurício) e do Zé Narciso. Adoravam colocar as alunas –mestras em apuros. Não perdiam oportunidade, fazendo cada pergunta...
Ficávamos de olho vivo peraltas, não obstante, muitas caiam em suas picaretagens e se encabulavam, perdiam o controle, o que lhes dava o maior prazer.
Mas havia muita mestrinha bonita, de olhar lânguido e de belas formas... e se aproveitando dos dons com que a natureza lhe dotara, jogava o seu charme, enfeitiçando aqueles moleques que, absorvidos com tamanha boniteza, se esqueciam as picardias.
Mas, voltando à música, Dulce no seu idealismo, procurava um meio de melhorar as suas aulas e aprimorar o nosso gosto musical. Queria nos ensinar a apreciar Chopin, Bethoven e Sebastian Bach.
Sonhava muito alto... sonhava com um piano para nossa escola.
Foi uma novela a compra daquele requintado instrumento. Houve discussões entre a diretoria e professores. Consideravam a idéia absurda, peso demais para nosso fordinho...
Mas a Dulce não desanimou com os protestos da velha guarda e embalada pelo entusiasmo dos alunos, prosseguiu naquela idéia. Houve troca de cartas, propostas e o negócio foi fechado com uma grande firma de Belo Horizonte.
Um belo dia o piano chega em Montes Claros, depois de uma longa viagem e muitas peripécias pelas estradas precárias do nosso sertão.
Instalaram-no no salão de festas, coberto com uma capa de feltro verde. A notícia correu rápida entre os professores e alunos. Mão houve aula naquele dia. Todos queriam ver a bela peça, admirar a beleza de suas linhas e brancura imaculadas de suas teclas, o brilho intenso do seu verniz. Era um legítimo Essenfelder.
Dulce, eufórica, caminhava nervosamente para lá e para cá, enquanto os curiosos tomavam conta do salão. Não resistindo aos impulsos do seu coração e os pedidos dos presentes , assentada na banqueta alcochoada de veludo vermelho (que acompanhava aquele belo instrumento), tocava músicas românticas, clássicas, retratos do seu gosto apurado.
Mas a euforia passou. O entusiasmo arrefeceu e tudo chegou nos devidos lugares. Estava na hora de pensar nas prestações, promissórias e nos juros.
Coitada da Dulce! Arcou sozinha com toda a responsabilidade daquela enorme dívida. Não contava com as mensalidades dos alunos, na maioria pobres. A caixa escolar mal dava para pagar as despesas da escola e a verba do governo, nem em pensamento.
Teve uma idéia: tirar dinheiro do próprio piano. Mas como? Fazendo chá dançante aos domingos, cobrando ingresso dos rapazes.
Alguns pais ranzinzas, não gostavam da idéia. Mas, que mal havia numa dança inocente (sem bebida) e durante o dia?
Entretanto, havia um porém. O prédio era muito grande, o quintal um matagal onde o colonhão crescia à vontade e se estendia até ás margens do Rio Vieira e quem sabe?... algum casalzinho afoito tentasse um passeio pelos campos e aprontasse...
Haveria, portanto, uma dupla proteção: alem dos familiares, professores seriam escalados, sob o sistema de rodízio, para vigiar as moças...
Diante daquela medida, os pais cederam e as filhas conseguiram livre arbítrio.
Tudo combinado. As alunas passariam os ingressos aos rapazes (dez mil réis), com exceção do Haley Jansen e Antônio Rodrigues que os recebiam gratuitamente toda semana. Eles seriam os animadores daquela promoção pois, com bonita voz, a alegria e humorismo dos dois, verdadeiros pé de valsa e que nunca se faziam de rogados.
Não existiam clubes sociais em nossa cidade. Portanto, aquela notícia foi recebida com entusiasmo entre a rapaziada. A dança era um meio de se aproximar mais das moças que eram extremamente presas e controladas pelos pais.
Todos os domingos, das 13 às 17 horas, o som maravilhoso do piano ecoava-se pelas ruas próximas da Escola Normal, acompanhando pelo saxofone do Tonico de Nana, a clarineta do Adail Sarmento e do bandolim do Ducho, numa contribuição gratuita.
As alunas vibravam numa euforia total, aquela oportunidade não era de se jogar fora. Embonecavam-se com vestidos leves, cheio de renda e rococó saltos Luis XV, perfumadas, bonequinhas de coração, especialmente femininas, numa beleza natural sem artifícios.
Não existia salão de beleza, recorríamos a colegas mais habilidosas para nos quebrar o galho.
A Maria Soares era disputadíssima. Tinha mãos de fada para fazer cachinhos, papelotes, ondular cabelos com perfeição e ainda bancava a manicure. Era execepcional.
Logo cedo corríamos a sua casa tirando-a da cama.
Aracy (sua mãe) ficava nervosa com aquela invasão de domicílio, antes mesmo dela passar a vassoura na sala de visitas.
Maria, com sua disponibilidade e bom humor, nos recebia com um sorriso. Ela gostava de ouvir as fofocas e novidades de primeira mão e, enquanto suas mãos habilidades procuravam dominar os rebeldes cabelos, despejávamos as novidades da semana, as rixas e briguinhas amorosas das colegas.
Nem sempre ela conseguia atender a todas (ela também era filha de Deus) e teria que se cuidar, para fazer como nós, aquele sucesso no esperado chá dançante.
A Dulce, com sua criatividade, não deixava a peteca cair. Inventava novidades para animar os pares, distribuía Cotillons, trovas, cartões para contra-dança, prendas etc.
Era com ansiedade que os namorados aguardavam ouvir seus nomes ligados àquelas brincadeiras interessantes e emocionados trocavam olhares naquela linguagem que só eles entendiam.
Foi um tempo bom graças ao piano e o dinamismo da querida e saudosa Dulce Sarmento, que dedicou a Montes Claros grande parte de sua vida.
Muitos namoros, noivados e casamentos floresceram e se realizaram à sombra daquele piano.
E foi assim que pagamos as dividas, melhoramos nossa escola, ajudamos nossa comunidade a crescer e... multiplicar-se.
E o piano, onde andará?
Confesso que tenho vontade de revê-lo, pois tenho dele as mais gratas recordações e uma enorme saudade!

(N. da Redação: Ruth Tupinambá Graça, de 94 anos, é atualmente a mais importante memorialista de M. Claros. Nasceu aqui, viveu aqui, e conta as histórias da cidade com uma leveza que a distingue de todos, ao mesmo tempo em que é reconhecida pelo rigor e pela qualidade da sua memória. Mantém-se extraordinariamente ativa, viajando por toda parte, cuidando de filhos, netos e bisnetos, sem descuidar dos escritos que invariavelmente contemplam a sua cidade de criança, um burgo de não mais que 3 mil habitantes, no início do século passado. É merecidamente reverenciada por muitos como a Cora Coralina de Montes Claros, pelo alto, limpo e espontâneo lirismo de suas narrativas).

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